O quarto que sente
- ️Mon Feb 20 2023
Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
entre palavras sem cor,
esperadas inesperadas
como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
letra a letra revelado
no mármore distraído
no papel abandonado)
Palavras que nos transportam
aonde a noite é mais forte,
ao silêncio dos amantes
abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill
in “No Reino da Dinamarca : obra poética 1951-1965”
Lisboa, Guimarães Editores, imp. 1974. p. 50
europa
"Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.
Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.
Filipa Leal
in "Vem à Quinta-feira"
nada tão silencioso como o tempo no interior do corpo
"Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.”
Fiama Hasse Pais Brandão
in Cenas Vivas
#leremqualquerlugar 2022
Ler em qualquer lugar, Carmen Zita Ferreira, no canal PNL no YouTube: Aqui
#leremqualquerlugar
#semanadaleitura2022
#pnl2027
#alermais
Europa
A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Alberto Caeiro
preocupações de manada
a zona de pausa
tens de a ter, caso contrário, as paredes
cercar-te-ão.
tens de desistir de tudo, deitar
fora, deitar tudo fora.
tens de olhar para o que estás a olhar
ou pensar no que estás a pensar
ou fazer o que estás a fazer
ou
a não fazer
sem considerar proveito
pessoal
sem aceitar orientação.
as pessoas estão consumidas com
o esforço,
escondem-se em hábitos
comuns.
as suas preocupações são preocupações de
manada.
poucos têm capacidade de olhar
para um sapato velho durante
dez minutos
ou de pensar em coisas estranhas
como: quem é que inventou
a maçaneta?
tornam-se desvivas
por serem incapazes de fazer
uma pausa
de se desarmarem
de se desdobrarem
de desverem
de desaprenderem
de se exporem.
escuta o seu riso
falso, depois
vai-te
embora.
Charles Bukowski, OS CÃES LADRAM FACAS (Antologia Poética), selecção, organização e prefácio de Valério Romão, tradução de Rosalina Marshall, ed. Alfaguara
auto-retrato em fundo cinza/diamante
"Well people I've been here before
I know this room and I've walked this floor
You see I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
But listen love, love is not some kind of victory march, no
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah...
There was a time you let me know
What's really going on below
But now you never show it to me, do you?
And I remember when I moved in you
And the holy dove she was moving too
And every single breath we drew was Hallelujah"
nove anos sem ele
A poesia vai acabar, os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis. Por exemplo, observadores de pássaros (enquanto os pássaros não acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao entrar numa repartição pública. Um senhor míope atendia devagar ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum poeta por este senhor?» E a pergunta afligiu-me tanto por dentro e por fora da cabeça que tive que voltar a ler toda a poesia desde o princípio do mundo. Uma pergunta numa cabeça. - Como uma coroa de espinhos: estão todos a ver onde o autor quer chegar? - Manuel António Pina in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"
entre nós
Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem.
Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos.
Entre nós
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
Maria do Rosário Pedreira
a fenda
“De repente, deixo de ouvir a música e só o meu coração bate. Paro no meio do salão de baile. Um susto: não sei dançar. Parece que qualquer coisa deu de si. Sinto um espaço entre mim e o meu corpo. Como se o meu corpo se tivesse desligado de mim. Uma fenda entre mim e o meu corpo. Mas talvez nada se tenha fendido. Talvez tenha sido sempre assim e eu nunca tenha reparado.”
Dulce Maria Cardoso in "Rosas"
tempo e silêncio neste quarto
"Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas não sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida."
Fiama Pais Hasse Brandão
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Que merda a nostalgia – nasce na respiração E fica demoradamente. A sombra Por dentro dos olhos, a baba, o sono, O excesso de sensibilidade nos dentes E a pele susceptível à roupa. Tão próxima Que queima e gela em simultâneo, dor Tão pequenina que nem acciona As reacções fisiológicas de defesa. Os detritos da festa acumulam-se, A memória ateia distantes fogachos De felicidades impossíveis, gomos De saudade, uma pena sem coragem Ou ternura. Que merda a nostalgia, Horizonte falsificado por linhas Rectas de solilóquio pensado, Luz que não vem ou vem em excesso, Carga de ombro inesperada no meio Do campo deserto. Que braços se abrem Para deter a espuma amarelada Com que a maré polui o areal? Rui Almeida
era um pássaro alto
Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.
Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.
Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.
Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.
Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.
Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.
Artur do Cruzeiro Seixas
Entrevista na ABCPortugal Rádio - 02.04.2021
No Dia Internacional do Livro Infantil tive o prazer de ser entrevistada pela doce Paula Melo, para a ABC Portugal Rádio.
Falámos de livros, de passado, de afetos, de covid-19 e de futuro. Espero que gostem tanto de ouvir como eu gostei de estar com a Paula. Obrigada!