Folha de S.Paulo - "Ponto de Vista": David Hare encena sua melancolia - 13/10/2001
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TEATRO
"PONTO DE VISTA"
David Hare encena sua melancoliaCRÍTICO DA FOLHA
David Hare fala, no espaço
de alguns anos em que se
passa a ação de "Ponto de Vista"
("Amy's View"), sobre a melancólica derrocada do projeto de sobrevivência da família liberal inglesa a partir da década de 70. É o
tempo do enfrentamento entre
Esme (Beatriz Segal), atriz, viúva,
defensora de um modo de vida
baseado nos valores "bem sentados", e Dominic (Marcello Antony), namorado e depois marido
da filha Amy (Adriana Esteves),
um jovem e ambicioso crítico de
cinema, que passa também a produzir com grande sucesso.
Ao desmoronamento da família
de Esme corresponde a ascensão
profissional de Dominic. Na contramão de todas as objeções de
ordem ética e artística da sogra,
ele abraça o meio escolhido com
incrível talento e rapidez, trabalhando para o convencimento das
massas e pouco se importando
com a arte séria, suas intenções e
filigranas intelectuais.
Esme é vítima da melancolia
que impregna as reminiscências
do passado e da própria recusa
em enfrentar com alguma objetividade os desafios que vão se colocando no presente. Descrente
de uma arte não "contaminada"
pelas manhas da publicidade e
pelos apelos fáceis da televisão e
do cinema, ela encontra os impedimentos e exigências de um tempo a que não mais responde e na
margem do qual se vai ilhando,
paulatinamente, até a ruína financeira e a solidão.
Não é à toa, portanto, que o diretor José Possi Neto identifica no
conflito algum chamado a certo
estado tchecoviano. Há uma discussão clara, polarizada entre o
romantismo amargo (às vezes
irônico, que tem suas raízes em
uma experiência já vivida), e o
chamado à "vida real", na voz de
Amy, uma espécie de fiel da balança, e Dominic, que com pragmatismo juvenil adere ao mundo
tal qual ele se apresenta.
Na montagem o diretor tem como desafio pôr em pé as contradições que esse esquema, apenas
descrito, não comporta. O texto
de Hare evita maniqueísmos e julgamentos de qualquer ordem.
Seus personagens são desenhados
em argumentos igualmente plenos de razão, e a platéia, naturalmente, tem espaço para se alinhar
com algum deles.
No espetáculo, no entanto, é desigual a maneira com que essas
criaturas resultam em cena, menos pela falta de compreensão do
universo da peça que pela necessidade de um trânsito mais flexível
dos atores entre os diferentes momentos da ação.
Beatriz Segal, a despeito da respeitável presença cênica, é vítima
de uma estranha melodia que insiste em marcar o final das frases,
e explora pouco as contradições
de Esme, talvez por já apresentar
de antemão seu ponto de vista sobre a personagem. Marcello Antony conduz muito bem um primeiro momento, mais idealista,
em que Dominic aponta com decisão as suas vontades, mas, na sequência, quase o entrega ao cinismo, em momentos que parecem
pedir mais do que a definição por
um ou outro traço moral.
Adriana Esteves encontra com
alguma dificuldade o personagem
mais difícil da peça, gastando um
tempo considerável para isso. Já
Myriam Pires dispõe da tranquilidade comum às grandes atrizes e
cria, sem sobressaltos, com notável segurança, a história paralela e
quase silenciosa de Evelyn.
Se não chega a surpreender,
"Ponto de Vista" ainda é das mais
significativas montagens entre as
que se dedicaram ao chamado
"teatrão" inglês contemporâneo.
(KIL ABREU)
"Ponto de Vista"



Texto: David Hare
Direção: José Possi Neto
Elenco: Beatriz Segal, Myriam Pires, Marcelo Antony, Adriana Esteves e outros
Onde: teatro Faap (r. Alagoas, 903, tel. 3662-1992)
Quando: de qui a sáb., às 21h; dom., às 19h
Quanto: R$25 (qui), R$30 (sex e dom.) e R$35 (sáb)
Patrocinadores: Sab Trading, Votorantim e Correiros
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