Folha de S.Paulo - "Missa dos Quilombos" retorna globalizado - 11/11/2004
- ️Thu Nov 11 2004
TEATRO
Celebrado pela primeira vez em 1981, espetáculo é relido pela cia. Ensaio Aberto neste final de semana em São Paulo
"Missa dos Quilombos" retorna globalizadoDivulgação![]() |
Cena do espetáculo "Missa dos Quilombos", que aborda escravidão e nova ordem econômica |
DA REPORTAGEM LOCAL
"Acreditamos que, se em muitas
ocasiões a igreja foi omissa e até
cúmplice no massacre dos povos
indígenas, também o foi muito
mais na tragédia do povo negro,
porque custou a condenar a escravidão."
É a voz de d. Pedro Casaldáliga,
76, arcebispo de São Félix do Araguaia (MT), na entrevista à Folha,
por telefone, quando informado
sobre a curta e inédita temporada
do espetáculo "Missa dos Quilombos" em São Paulo, neste final
de semana.
Casaldáliga, que já havia ajudado a reafirmar a causa indígena
("Missa para a Terra Sem Males",
1978), também concebeu o roteiro da missa pela causa negra ao lado do poeta Pedro Tierra (que
atuou na guerrilha durante o regime militar, preso entre 1972 e
1977) e do cantor e compositor
Milton Nascimento.
A primeira celebração aconteceu em 22 de novembro de 1981,
em frente a Igreja do Carmo, em
Recife, local onde a cabeça de
Zumbi dos Palmares foi exibida
no alto de uma estaca, em 1695.
Mais de duas décadas depois da
sua primeira apresentação, "Missa dos Quilombos" ganhou em
2002 uma releitura da companhia
Ensaio Aberto, nascida no Rio de
Janeiro há 12 anos e voltada para
temas sociopolíticos (já tratou de
reforma agrária, da luta da esquerda latino-americana etc).
Do projeto original, estão integrados à nova montagem o diretor musical Túlio Mourão, compositor e arranjador mineiro que
chegou a dividir pianos e teclados
com Flávio Venturini, no CD homônimo de 1995, e o diretor de
percussão Robertinho Silva, carioca com 40 anos de dedicação à
pesquisa musical).
Diretor e um dos idealizadores
da Ensaio Aberto, Luiz Fernando
Lobo diz ter preservado as 11 músicas do roteiro e boa parte dos
textos.
Fez também uma ou outra inserção, como uma carta do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho
(1935-97), que versa sobre o trabalho infantil, e uma frase do dramaturgo alemão Heiner Müller
(1929-95): "Meus cúmplices são
os negros de todas as raças".
"Hoje em dia, os negros têm a
companhia de mulheres, crianças, velhos e outras minorias étnicas", diz Lobo, 45.
Condição humana
O espetáculo também não quer
falar somente do Brasil, mas da
condição humana no mundo globalizado. O que os escravos contemporâneos produzem nem
sempre é consumido em seu país.
E a escravidão, por aqui, acredita
Lobo, não tem sentido figurado.
"Parece que vamos falar só dos
velhos quilombos, dos tempos
antigos da escravidão, mas, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, nunca
houve tantos escravos no mundo
como hoje", diz Lobo. "Só neste
ano foram libertos no Brasil 2.000
escravos, gente com trabalho não-remunerado e obrigatório."
No espetáculo, 20 atores-dançarinos e sete músicos ocupam uma
estrutura cênica que lembra uma
plataforma. A concepção visual é
inspirada em fotos de Sebastião
Salgado ("Trabalhadores", 1993,
livro que retratou uma "arqueologia da era industrial").
Lobo quer contrastar o trabalho
da idade da pedra com aquele da
era do ciberespaço, umbilicados
na nova ordem econômica.
(Aliás, a própria temporada no
teatro Alfa é um contraste, considerado palco nobre).
Daí o "cemitério industrial" em
cena, com dezenas de máquinas:
da turbina de avião ao reles moinho de farinha. "Missa dos Quilombos" foi erguido há dois anos,
com R$ 600 mil.
MISSA DOS QUILOMBOS. Com: cia. Ensaio Aberto. Cenografia: Cláudio Moura. Figurinos: Beth Filipecki. Iluminação: Leysa Vidal. Onde: teatro Alfa -sala A (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, Santo Amaro, tel. 5693-4000). Quando: somente amanhã e sábado, às 21h; domingo, às 18h. Quanto: R$ 20 e R$ 40. Patrocinadores: Petrobras e Eletrobrás.
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