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Caetano diz que cantar "só um tapinha não dói", causadora de vaias em seus shows recentes, afasta os "chatos"
"Não quero gente chata atrás de mim"Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem![]() |
Caetano na poltrona de onça de Paula Lavigne; novo show tem "Tigresa", "Leãozinho" e canções de Luiz Melodia e Lulu Santos |
Na sequência de sua entrevista, Caetano responde sobre a atual relação dos artistas com a indústria, que emplaca trabalhos de regravações ao vivo (seu "Prenda Minha", de 98, vendeu 1,125 milhão de cópias), mas empaca no que os artistas têm de inédito para cantar ("Noites do Norte" está em 115 mil, segundo sua própria gravadora).
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)Folha - A presença de seu filho
Moreno em "Noites do Norte" o
aproximou do rock de guitarras?
Caetano Veloso - O disco tem
muita coisa a ver com Moreno.
Ele está muito presente, e Pedro
Sá também. Eu estava interessado
em coisas técnicas em que eles,
por serem jovens, estão mais inteirados que eu. Sempre trabalhei
sem a menor ambição de controle
do resultado sonoro. É uma pena,
porque hoje há tanto interesse por
meu trabalho em vários lugares
do mundo e eu não tenho uma
obra bem-acabada para mostrar.
Era uma anarquia total, era até
um modo de resistir ao "producismo" e ao "losangelismo" que
estavam na moda. Para nós era
assim: vamos todos para o estúdio, a turma, e lá a gente toca.
Folha - Hoje você é o contrário
disso, não?
Caetano - Eu não esperava perenidade para os discos nem reconhecimento internacional. Mas os
anos foram passando, e em "Velô" (84) resolvi mudar, quis fazer
um disco produzido. Daí em
diante foi assim. Mas queria fazer
um "negocim" mais meu e então
encontrei Jaques Morelenbaum
Folha - Você se irrita quando ele é
tratado como um padronizador?
Caetano - Ele é um músico de
grande capacidade, não é um homogeneizador porque o que faz
em cada um de meus discos e
shows é sempre muito diferente.
Talvez as pessoas tenham medo
do alto nível e da capacidade de
Jaquinho. No Brasil todo mundo
se sente incompetente porque é
brasileiro, parece que tem incompetência inata. No fundo é um
pretexto para que a pessoa possa
ser preguiçosa e irresponsável.
Folha - Fracassomania?
Caetano - Podia ser, já ouvi, Fernando Henrique adora usar essa
expressão. Nunca usei. Tudo
bem, por que não? Eu defendia
Pelé nos anos 70 contra todos os
formadores de opinião. Havia
uma obrigação de ser de esquerda, de denunciar tortura. Eu achava tudo errado, você tem o luxo de
produzir Pelé e ainda vai reclamar? Tem que ajoelhar na frente
de Pelé. E calar a boquinha.
Folha - Você prefere a reverência
à irreverência?
Caetano - Acho altamente irreverente ter coragem de realmente
ser reverente com quem merece
ser alvo de reverência. Agora houve um prêmio do canal Multishow, aparece uma menina, Wanessa Camargo, e a platéia vaia.
Você acha que nos Estados Unidos Celine Dion vai cantar no Oscar e a platéia vai vaiar? Lá há um
número enorme de pessoas da
platéia que devem pensar que Celine Dion é um saco. Mas não vão
vaiar, porque Celine Dion, com
aquela música intragável, vendeu
trilhões no mundo inteiro, e os
americanos não querem destruir
a capacidade deles próprios de
produzirem e se afirmarem.
Folha - Mas para cada Celine Dion
eles têm dez contrapontos a ela.
Caetano - Não, para cada Celine
Dion eles têm 30 Celines Dion, a
maioria delas preta e todas cantando muitíssimo bem. No Brasil
não há. As pessoas que têm capacidade de cantar dificilmente chegam ao estrelato aqui. Só Elis Regina chegou ao estrelato de primeiro lugar. Você tem Joyce, Jane
Duboc, meninas incríveis que ficam no coro o resto da vida. São
carreiras injustamente falhadas.
Lá, não, porque a cada antiga Celine Dion que apareceu o que falou mais alto não foi a vergonha.
Quando digo que Sandy canta
bem é porque ela canta. É bom
que se possa criar uma indústria
competente em torno disso.
Folha - Como avalia a saúde atual
da indústria fonográfica daqui?
Caetano - Houve um crescimento grande do país e uma grande
subida no mercado alguns anos
atrás. Depois disso houve uma
queda, hoje há uma possibilidade
de instabilidade porque o Brasil é
um país muito instável. O governo que está aí fez muitas trapalhadas, uma em cima da outra. A crise energética é inaceitável, um
presidente não pode ser surpreendido por uma questão relativa a um setor de longo prazo. Está errado, é incompetência. A perda da respeitabilidade política pela liberação de verbas para os parlamentares não votarem a favor
da CPI da corrupção foi algo muito malfeito. E sobre o artigo de José Arthur Giannotti na Folha, se
há uma área cinza em que a moral
não deve entrar, justamente essa
não deveria ser dita. Não deve ser
explicada como uma mostra de
maior inteligência ainda. Há algo
de doentio nessa superioridade
errada do lado USP do PSDB.
Folha - Em entrevista à Folha em
97, você classificava como má-fé
dizer que FHC pudesse ter comprado votos de parlamentares para a
reeleição. Reviu aquela impressão?
Caetano - Essas tramóias e essa
zona de sombra moral de que fala
Giannotti de fato existem e têm
que existir. Mas para existir quem
faz tem que saber fazer, tem que
saber mantê-la na sombra. Não
basta posar de bacana. Não falo isso para dizer que tenho a mesma
opinião dos críticos do governo,
nem da reação popular a ele. Há
uma evidente perda de perspectiva, mas até aqui a passagem de
FHC pela Presidência tem um saldo positivo e uma marca positiva
na história futura do Brasil.
Folha - Voltando ao mercado fonográfico, os artistas têm precisado fazer muitos discos ao vivo e de
regravações para ter sucesso.
Caetano - Olha, como isso não
tem impedido que discos novos
com algo novo a dizer apareçam,
não vejo nenhum problema. Os
discos de canções regravadas são
bons, porque engrossam o caldo
da memória brasileira. Antigamente, no Brasil, parecia que a
pessoa tinha que ir se descartando
logo de si mesma. Quanto a isso,
os discos ao vivo e as revisitações
de repertório são de extrema positividade. Há casos que vão para
um nível baixo de comercialismo
e oportunismo, de aproveitamento do que é mais fácil. Mas isso é o
mercado. Eu não sou o mercado,
sou um artista e sou livre.
Folha - De "Prenda Minha" para o
disco inédito, você perdeu nove em
cada dez compradores. O mercado
não o aprisiona num modelo de valorizar só o que você já foi?
Caetano - Não, de jeito nenhum.
"Noites do Norte", que é um disco
difícil, vendeu mais ou menos o
que meus discos vendem. O caso
de "Prenda Minha" é que saiu da
norma. Se 150 mil chegarem a
comprar "Noites do Norte" já é
muita coisa, já é um disco danado.
Não posso posar de coitadinho,
como não sou, nem dizer que o
mercado está me estrangulando.
Talvez as coisas fiquem repetitivas. Talvez não, com certeza. Mas
é uma tendência natural de quem
vende, fazer o que vende mais facilmente. É claro que a gravadora
tem que querer isso. Seu jornal
não quer que você faça de modo a
que ele venda mais? Vocês não fazem coisas muito mais abjetas do
que qualquer um de nós possa fazer para que o jornal venda mais?
Folha - Você pode responder em
relação a seu meio, sem comparar?
Caetano - Essa comparação é
que é importante. Mas a questão é
que é natural que uma empresa
que vende discos queira vender
discos. E que, se ela descobre qual
a melhor maneira de vender discos, ela vai tender a fazer isso.
Nunca vi o "New York Times" dizer que Ray Charles é um imbecil.
Abro a Folha e vejo dizerem isso
de mim e de Chico Buarque.
Folha - Que são imbecis?
Caetano - Praticamente. Só falta
xingar a mãe da gente. O artigo
sobre o disco de Chico falava mais
de mim que dele. Era desrespeitoso, ofensivo, horrendo.
Folha - Você é orientado pela culpa por ser branco e homem, como
afirmou texto do "JB"?
Caetano - Não sou branco. Nem
sou homem. O artigo é confuso,
mas me fez bem, porque tratou
com muito amor o show. A questão racial é crucial para mim. O
movimento negro, sob influência
dos americanos, trouxe muitas
coisas boas, mas também têm
ameaçado muitos tesouros nossos. Essa sensação espontânea de
que não se tem que pensar as pessoas como divididas racialmente
é um tesouro, é algo divino, que o
Brasil tem como experiência e deve ser reencontrado.
Folha - Essa postura não oculta
atrás dela um homem branco, poderoso, um "senhor de escravos"?
Caetano - Joaquim Nabuco diz
que cada indivíduo brasileiro é
um composto de senhor e escravo. É esse composto que é nosso
dever transformar em cidadão.
Passando a ser cidadão, você vira
alguma coisa que transcende isso.
Folha - Você tem reagido bem às
vaias à música do tapinha?
Caetano - É uma centena ou
duas de pessoas entre 2.000. É
uma vaia danada, 200 pessoas
vaiando. Me divirto um pouquinho. É surpreendente, porque havia sido cantado por Fernanda
Abreu, Adriana Calcanhotto e Rita Lee, e é uma obviedade total.
Folha - As vaias de agora não vêm
de você ficar intransigente na defesa de seu apreço por Sandy e congêneres e marginalizar a elite cultural que o adorava?
Caetano - Por mim... Afasto os
chatos. Não quero gente chata
atrás de mim.
Folha - Os chatos que pagam R$
85 para ver seu show?
Caetano - Uma coisa não tem
nada a ver com a outra, que sociologia é essa? Os dias que mais me
vaiaram no Canecão foram os dos
ensaios abertos, quando custava
R$ 10. Era uma gente mais jovem,
mais ambiciosa intelectualmente,
que tem pouco dinheiro e se sente
mais ameaçada por determinadas
posições estéticas ou culturais. É
uma vontade de dizer "eu sou
mais bacana do que o resto". É do
chato bacaninha que estou falando, não do burguês que tem dinheiro para pagar.
Folha - Por que em "Rock'n'Raul"
você tacha Raul Seixas, que misturava repente e baião com rock, como um mero americanizado?
Caetano - Essa visão foi ele que
deu. Desde a Bahia eu sabia de sua
identificação imediata com o
rock'n'roll e com a figura do americano. É completamente diferente do nosso pessoal. Ele às vezes
conversava em inglês, teve duas
mulheres americanas, andava de
bota americana. Mas ao mesmo
tempo era muito "baianista". Falava com sotaque carregado, só
usava gírias de Salvador, isso aparecia na música. Mas pegou o pós-tropicalismo, um mundo fácil para ele quanto a isso.
Folha - Tom Zé também fez uma
música sobre Raul, mas admitindo
sua brasilidade, colocando-o lado a
lado com Luiz Gonzaga.
Caetano - Ouvi a música do Tom
Zé, vi que eles chegam ao FMI. É
bacana, porque no fundo termina
sendo a mesma coisa. Também
entendo como enfrentamento, na
minha música Raul diz "mas minha alegria, minha ironia é bem
maior do que essa porcaria".
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